
Juliana Vannucchi e a poetisa Matilda Joon refletiram sobre as conexões existentes entre a poesia e a filosofia, e sobre como essas áreas reverberam no rock and roll.
O diálogo transitou também pelas ideias do profético Aldous Huxley.
Matilda acredita que a poesia é uma espécie de cura em meio ao caos da vida e também sustenta que, sendo ela uma melodia que floresce na alma, é também o novo rock and roll.
Juliana Vannucchi: Há anos nutro um enorme interesse pela alquimia que, em suma, compreendo, em partes (simbolicamente falando) como um processo de transmutação interna. É basicamente quando migramos de um estado para o outro, quando abandonamos um modo de ser ou conceber as coisas e experienciamos outro que é novo e mais elevado. E no caso… costumo ver a poesia, em certos aspectos, como uma arte de potencial alquímico. Você já pensou na poesia dessa maneira?
Matilda: Eu realmente adoro que você pense em poesia como alquimia! De fato, sim, poesia é um tipo de transformação — não apenas a transformação das palavras em beleza, mas de emoções em significado, dor em poder, do ordinário em algo sagrado — a poesia não somente descreve a alma — ela a transforma e a agita! E como eu já disse antes: às vezes até a salva! O ato de escrever ou ler um poema pode mudar você. Não tenho a menor dúvida disso. Como transformar sentimentos crus e não ditos em ouro — um ritual onde o invisível se torna visível, onde a linguagem não apenas comunica, mas transmuta.
Juliana Vannucchi: Achei fantástica essa menção que você fez sobre a poesia ser um ritual em que o invisível se torna visivel. Enfim… tudo que você disse foi muito profundo. Como costuma ser seu processo criativo para dar vida a um poema?
Matilda: Meu processo criativo é silencioso, mas confuso e muito vivo. Geralmente começa à noite, quando o mundo fica parado e o barulho desaparece. Tomo chá e coloco minha música favorita pra tocar… deixo o mundo se dissolver… escrevo palavras que parecem ter esperado o dia todo para aparecer no escuro. Escrever para mim não é uma linha reta… é mais como vagar pela memória do silêncio sonoro… e dessa… caminhada… surge uma linha ou um momento da verdade.
Juliana Vannucchi: Interessante. A coruja é o símbolo da Filosofia porque enxerga na escuridão. Você, enquanto artista, também faz isso. Você usa sua poesia como forma ritualística? Tipo um feitiço feito através de Spoken Word? A noite é um convite ao infinito…
Matilda: Sim, eu escrevo e interpreto Spoken Word há muitos anos! E eu adoro! É cru e completamente sem filtros!
Juliana Vannucchi: Já que trouxe a Filosofia para nossa reflexão, gostaria de saber se você considera que ela está, de alguma maneira, associada à poesia. Quer dizer, claro que essa conexão sagrada existe… porque há filósofos, como Voltaire e Nietzsche, por exemplo, que filosofaram – embora não exclusivamente – através dos versos. Ou seja, historicamente essa aproximação entre ambas é legítima. Recentemente eu estava lendo um texto sobre Florbela Espanca, no qual a autora comentava que sua poesia era uma maneira de tentar entender o sentido da vida. A obra de Espanca não se resume a isso, mas seria um aspecto de sua poesia…
Matilda: Acredito que poesia e filosofia estão profundamente conectadas – ambas buscam explorar a essência do ser – a natureza da verdade e os mistérios da existência. A filosofia usa lógica e razão, e a poesia usa emoções, metáforas e ritmo. Considero a poesia a alma da filosofia – ela dá vida ao pensamento abstrato. Quando as ideias se tornam muito complexas, a poesia intervém. Ela permite a contradição e o sentimento… a conexão é natural. A poesia dá à filosofia um coração e a filosofia dá à poesia uma espinha dorsal.
Juliana Vannucchi: Suas palavras são sensíveis e intensas… Por que você acha que devemos ler poesia? Voltaire certa vez escreveu que “a poesia é a melodia da alma”. Aonde essa melodia nos leva?
Matilda: Devemos ler poesia porque ela nos lembra que estamos vivos. Em um mundo que se move rápido demais, a poesia nos pede para desacelerar – para ouvir, sentir, perceber. É um espelho e uma porta – um espelho que nos mostra nossos pensamentos ocultos e uma porta para a alma de outra pessoa. A poesia diz as coisas silenciosas em voz alta – ela guarda espaço para alegria e tristeza – raiva e beleza – às vezes, tudo no mesmo verso. Lemos poesia para lembrar que não estamos sozinhos – que alguém, em algum lugar, sentiu exatamente o que estamos sentindo agora… e transformou isso em arte.
Juliana Vannucchi: Matilda, eu estava lendo um ensaio de Huxley no qual ele argumenta que pessoas que leem bastante são “consumidoras ruins” que contrariam a estrutura do sistema global vigente, que tem como uma de suas propostas estimular o consumo. O Huxley entende que os leitores são indivíduos muito abastecidos pelos seus próprios conteúdos e, por isso, acabam sendo ricos interiormente e tendo uma imaginação livre. Então, consequentemente, sabem viver melhor com as suas próprias companhias… talvez os livros os abasteçam para isso. Já o homem que lê menos ou não lê, é a isca para a engrenagem de um sistema que preza pela venda compulsiva e pela construção da superficialidade. Como você entende isso? Huxley alega que a sociedade, inclusive, tenta até mesmo rotular os ávidos leitores como sendo pessoas estranhas e geralmente infelizes… seria uma estratégia perversa da lógica mercadológica!
Matilda: Uma pessoa que lê profundamente desenvolve uma vida interior — uma espécie de força silenciosa que não anseia constantemente por distração ou consumo. Então, sim, a ideia de Huxley toca em algo muito real: um sistema movido a lucro prospera com a insatisfação. Ele precisa que queiramos mais, compremos mais, rolemos mais. Mas uma pessoa que lê muitas vezes já está cheia… cheia de pensamentos, perguntas… e imaginação. Ler treina a mente a refletir em vez de reagir… a se perguntar em vez de apenas querer. Esse tipo de pessoa é mais difícil de manipular. Não preciso das novidades para me sentir completo… Tenho livros e poemas que me fazem sentir visto e compreendido… Até mesmo livre. E exatamente isso… é uma forma silenciosa de rebelião.
Juliana Vannucchi: Seria uma mudança de percepção. Isso me fez lembrar de outros dois gênios que se alinham ao Huxley: Jim Morrison e Blake. O Morrison era fortemente influenciado pelos “Provérbios do Inferno” e pelo legado geral de William Blake, que foi um profeta místico. Huxley também foi um visionário porque no início de 1930, fez previsões quase infalíveis sobre tendências que hoje imperam no mundo. Mas voltando ao Blake: ele acreditava que devemos apreender o infinito que a meu ver, está oculto nas intermináveis possibilidades do instante. O The Doors usava a música e a teatralidade para trazer ao mundo físico uma dimensão invisível. Como você entende as relações entre o Jim Morrison, o Blake e o Huxley?
Matilda: Ohh… Como eu adoro responder a essa pergunta! Todos os três buscam as portas por trás do mundo visível! Aqui vamos nós – acredito que a poesia não apenas reflete a realidade… mas a refrata! Como os tigres em chamas de Blake! Como as visões que expandem a mente de Huxley! E, claro, as “portas da percepção” de Morrison! A poesia muda a lente! Ela pega o comum… a rua da cidade, o silêncio, a tristeza… e mostra o espírito por trás da pele das coisas. Jim Morrison disse uma vez: “Há coisas conhecidas e coisas desconhecidas, e no meio estão as portas”. A poesia vive nesse meio. É a batida. A chave. A passagem. Blake viu anjos nas árvores. Huxley viu a eternidade nas dobras da mente. Morrison viu o Fim – e o renascimento – em uma única canção. A poesia não descreve apenas o mundo. Ela o desmantela… incendeia-o — e pede para você ver o que resta quando a fumaça se dissipar! A poesia abre portas… às vezes lentamente, como uma prece… às vezes violentamente, como um grito.
Juliana Vannucchi: Brilhante! Você está certa… Com certeza vejo a poesia nesse meio! Como um ato mágico, inclusive. E sim… Morrison era um sátiro encarnado! Uma representação do estado dionisíaco e também um adulterador de consciências. O mensageiro do Eterno Retorno do Mesmo.



Prosa poética escrita pela Matilda:
THE HARDEST THING ISN’T THE BRUISES
OR THE GASLIGHT HOURS
OR THE OVERALL ABUSE THAT JUST KEEPS GOING –
IT’S THE REALIZATION-
SLOWLY-
THAT HE IS FINE WITH IT
I USED TO THINK EVIL WAS ALWAYS ELSEWHERE-
ABSTRACTEVIL IS SITTING ACROSS THE TABLE
EVIL IS LIGHTING A CANDLE AND MAKING A CUP OF TEA
EVIL IS LEAVING GIFTS ON THE PILLOW IN THE MORNING
EVIL MAKES PICNICS BY THE SEA AND READ ME POETRY BY THE FIRE
AND THEN LATER-
CALMLY-
SURGICALLY-
DISMANTLING ME INTO TINY LITTLE PIECESTHE PROBLEM I HAVE WITH LIVING WITH EVIL IS THAT
MY BRAIN REFUSE TO ACCEPT IT
I THINK HE IS BROKEN
NOT EVIL
I THINK HE HAVE SCARS
NOT EVIL
I THINK
SURELY NO ONE COULD MEAN THIS
BUT THEN HE SMILES AT ME WITH THAT LITTLE TWIST IN HIS MOUTH
AND I START TO UNDERSTAND
LITTLE BY LITTLE
HE MEAN EVERY SINGLE SECOND OF IT
HE WEAR IT LIKE A COMFORTABLE SWEATER
NATURAL
ENTIRELY HIMSELF
AND HE LOVES HIMSELF FOR IT
HE BUILDS HIMSELF ON ITEVIL HAVE ANOTHER CUP OF TEA
SCRATCH SOMETHING INTO HIS NOTEBOOK
WHISTLE LIKE A MAN PLEASED WITH HIS WORK
AND I SIT HERE
STARING AT HIM
KNOWING HE WILL DO IT AGAINI AM TRYING TO ACCEPT THE UNACCEPTABLE
THAT PEOPLE LIKE HIM EXIST
THEY WALK AROUND IN DAYLIGHT
WRITING POEMS
HOLDING HANDS
SMILING AT NEIGHBORS
THE CRUELTY ISN’T AN ACCIDENT
IT’S WHO THEY AREI’M TRYING TO PIN EVIL DOWN ON THESE PAGES
SO IT DOESN’T KEEP FLOATING
BECAUSE THE TRUTH IS
HE WILL GO ON AS IF NOTHING HAS HAPPEND
AND I WILL GO ON STILL IN DISBELIF
FILLED WITH ANXIETY AND BRUISES
ASTONISHED THAT EVIL IS NOT A MYTH
BUT THE MAN I KISS GOODNIGHTI HAVE LIVED WITH THIS FOR YEARS
AND WORSE-
I LIVE IN DENIAL OF IT
THE DENIAL IS NOT THAT I DON’T KNOW-I ALWAYS KNOW
MY WITCHY INTUITION IS ALWAYS THERE
THAT LITTLE NERVE PULSING IN ME BEFORE ANYTHING IS HAPPENING
I KNOW EVERY SINGLE BETRAYAL
I AM PSYCHIC IN THE WAY ALL WOMEN ARE PSYCHIC WHEN THEY HAVE BEEN HURT ENOUGH TIMES-
ATTUNED TO EVERY TINY WRONGNESS IN THE AIR
CALL IT PSYCHIC
CALL IT SURVIVAL
I ALWAYS KNOWI SEE IT BEFORE HE DOES
THE WHOLE ARC OF IT
LIKE AN OLD FILM REEL CLICKING THROUGH HIS MIND
YET-
I FLOAT THROUGH IT IN A FOG DISSOCIATED
CONVINCING MYSELF HE IS JUST TRAGIC IN A WAY I CAN MENDI AM RUNNING OUT FROM THE HOUSE UP TO THE DARK MOUNTAINS DEEP INTO THE WOODS
SOMETIMES I FIND THE GYPSIES AND THEIR CARAVANS
WITH THEIR CATS DOGS AND HORSES RUNNING FREE
THEY ALWAYS WELCOME ME WITHOUT A WORD
I SIT BY THEIR OUTDOOR FIREPLACE WATCHING SPARKS CRACK OPEN LIKE STARS
I DRIFT SO FAR INTO MYSELF I CAN ALMOST BELIEVE
I AM NOT THERE AT ALL
THAT’S WHAT DISSOCIATION DOES
IT BUILDS A FOG SO THICK YOU CAN LIVE INSIDE THE MOST BIZARRE CONTRASTS:
THE VALLEYS SHIMMERING WITH ANCIENT BEAUTY
MY HEART WHISPERING WARNINGS IN EVERY BEAT
I DON’T WANT TO BELIEVE I HAVE CHOSEN THIS
WITH ALL MY INTUITION
ALL MY UNCANNY SENSE OF THINGS
HAVE I SIGNED MY NAME AT THE BOTTOM OF HIS EVIL SCRIPT?
I CAN’T ACCEPT OR UNDERSTAND IT.HE IS NOT BROKEN
HE IS NOT LOST
HE IS HIMSELF
AND HE IS FINE WITH IT
HE IS WRITING POEMS
HE BUYS ME FLOWERS
HE MAKES TEA AND TOAST IN THE MORNING FOR ME
HE HOLDS MY HAND IN TESCO
WE ARE BUYING FOOD FOR THE WEEKEVIL WALKS AMONG US
AND THE WORLD GOES ON BEING BEAUTIFUL ANYWAY
AND MAYBE THAT IS THE MOST UNBEARABLE THING OF ALL
JULIANA VANNUCCHI
Sorocaba – São Paulo
Instagram | Website Fanzine Brasil